História

FORMAÇÃO DA RIA

A formação geológica da península à qual pertence a Torreira está ligada à formação da ria de Aveiro. Sobre a formação da ria existem diversas opiniões contraditórias.

Marques Gomes e Rocha Madahil defendem que a ria é moderna e posterior ao domínio romano.

Amorim Girão afirma que o cordão arenoso em que está situada a Torreira já existia na época do domínio romano, pelo menos em parte, e Araújo e Silva vai ainda mais longe e dá vinte e cinco séculos de idade à ria. Alberto Souto julga que este cálculo não andará longe da verdade e considera poder mesmo falar-se numa ria (ainda muito incompleta) com três milénios.

Tendemos a ser mais sensíveis aos argumentos destes últimos e inclinamo-nos para alinhar com aqueles que têm apontado a «pelagia insula» da «Ora Maritima», do escritor romano Avieno, como sendo na nossa ria, provavelmente a região marinhoa, com a ressalva de ser muito menos autorizada a nossa opinião. Alberto Souto também admite poder situar-se na ria de Aveiro a «pelagia insula».

Mais pacífica é a ideia de que o cordão arenoso em que se situa a Torreira terá sido a última parte da ria a formar-se, depois da zona marinhoa e da gafanha (19; veja-se em especial, sobre a formação da ria, 19, p.109). Sendo sem dúvida de formação última a estreita peninsula, esta foi engrossando com a acção do vento, que ajudava a depositar parte do cordão dunar a nascente (19, p. 124 e 125). Rocha e Cunha (17, p. 27 – mapa – e 28) situa a barra na Torreira por volta de 1200, opinião largamente aceite e divulgada posteriormente por vários autores.

Na sua resposta ao inquérito de 1758 (1) o pároco da Murtosa afirma que a Gelfa vareira não é cultivada nem tem árvores, é uma península de areia movediça. Eduardo Costa afirma, em comentário à resposta do pároco (1), e concordamos, que a existência de gado na Gelfa implicaria pelo menos o cultivo das pastagens necessárias à alimentação do gado ali criado. A arborização da região terá sido posterior.

REFERÊNCIAS MEDIEVAIS

Vimos já que no século XIII a duna chegava à Torreira, e com ela o julgado de Cabanões (hoje Ovar), a quem ficou pertencendo todo o cordão dunar – ao qual se chamava de Gelfa – à medida que se foi formando (5, p. 63).

A referência mais antiga que se conhece à Gelfa é de 1283 (doações de D. Diniz, liv. I, 64), em que aparece o nome «Guelfa». Naquele tempo o rei aforou esta sua propriedade, vitaliciamente, a Pedro Bermutes. A Gelfa pertenceu de seguida ao mosteiro de Grijó, que ali teve muito gado (éguas, vacas, bois, porcos) o qual veio a ser dizimado pela epidemia de 1348. Os vareiros começaram entretanto a fazer logradouro comum e público da Gelfa, havendo no entanto vários senhores que foram tendo daqui direitos (5, p. 64). Notem-se particularmente os direitos aqui tidos pela Sé do Porto e pelos senhores do Castelo da Feira (mais tarde a Casa do Infantado).

No início do século XVI o foral de Ovar refere a “gelffa” mas não fala na Torreira (18).

ETIMOLOGIA: Gelfa, Torreira, Muranzel

Quem nos dá alguns dados de interesse sobre a Gelfa é o Monsenhor Miguel de Oliveira (13, p. 76-80; e, em especial, 13, 80 e 81, em rodapé) que lhe dá o significado que ainda hoje vem nos dicionários (relva, pastos nascediços em maninhos), e outro mais ousado, a respeito do qual cita um autor francês, o qual afirma que o nome vem do árabe «djilf»: «terre où les récoltes sont précaires, champs abandonnés à la grâce de Dieu», mais de acordo com o significado que conhecemos desde menino, de desarrumação, desordem.

Sobre a Torreira, José Pedro Machado (7) fica na dúvida, sem saber o que dizer, pondo a hipótese da origem estar em «torre» ou «terra», não deixando de citar diversas localidades com o mesmo nome. O Dr. José Tavares (20, p. 201) não hesita em mergulhar na fantasia de uma «Torreira, pela ardência do chão e a tremulia dos ares», do escaldante, do torrar ao sol.

Ora, ao sufixo feminino –eira é atribuído o significado de «local onde se encontra o objecto expresso pela palavra primitiva» (14, p. 205), neste caso uma eventual torre. A zona da Torreira foi já chamada pelos murtoseiros de Areia (20, p. 39), o que poderia até contribuir para a conjugação de duas palavras (a torre da Areia) para dar origem ao topónimo que hoje conhecemos.

Pouco provável, mas a ter em conta, é a relação do topónimo com o do Torrão do Lameiro. O primeiro documento que fala do Torrão do Lameiro é de 1607 e refere-se a marinhas de sal (1). E os estudos relativos a termos utilizados nas salinas (de resto frequentes do passado da região marinhoa de além-ria) dão-nos para «torroeira» o significado de «zona do sapal donde se extrai o torrão» e «torrão», «lama argilosa dos sapais, endurecida e cortada em cubos de 20 cm de aresta, contendo raízes de plantas que, mais tarde, se desenvolvem, enfenando o torrão», (3 e 11). Não há, todavia, qualquer referência a antigas marinhas de sal nas proximidades da Torreira.

Sobre o Muranzel parecem haver pistas importantes no alvará régio de 20-3-1584 (9), do qual nos falam Lopes Pereira (6) e o Pe. Vieira de Rezende, em primeira mão, na sua «Monografia da Gafanha». Este alvará refere-se a uma torre onde em tempos já então antigos os barcos que entravam e saíam da ria pagavam os respectivos impostos. Interessa o facto de em fevereiro de 1978, «por ocasião de inusitada escalada do mar, terem sido postos a descoberto, pelo assalto das ondas enfurecidas, restos de uma estrutura cilíndrica em alvenaria, de apreciável diâmetro […] o interior não era mais que um emaranhado da pedra utilizada na construção, enquanto que o exterior se apresentava […] rebocado e exibindo dois patamares salientes (e é de crer que outros existissem na parte que o tempo consumiu) obliquamente sobrepostos, porventura destinados a servir de qualquer traço de escada» (9). Lopes Pereira (6, p. 25 e 26, em nota de rodapé) indica a Torreira como possível localização da tal torre (forte ou torre sinaleira), talvez por alturas do Muranzel, por volta de 1200. E desta torre nasceria então a junção de muro e aranzel (grosso modo aranzel significa regulamento) em Muranzel (9), embora também se suponha que a origem possa estar em Almundazel (19, p.111).

PESCA E TURISMO
(actividades económicas)

Ao que parece, a instalação duma povoação na Torreira e não em qualquer outro lugar da Gelfa deu-se por o mar ficar mais próximo da ria para quem a atravessava vindo da terra marinhoa (20, p.201). A povoação teria sido feita em simultâneo por vareiros e marinhões e não seriam tanto os pescadores do Furadouro que foram para a Torreira e ali ensinaram os marinhões a arte da pesca no mar. Com o tempo a Torreira transformou-se no mais afamado e activo centro de pesca de arrasto da Beira Litoral, particularmente da sardinha (5, p.71), e na pesca estava a base da economia local. Por 1899 a Torreira era ainda um grande centro de pesca e praia de banhos. Egas Moniz (1874-1955) conta na sua auto-biografia («A Nossa Casa») também por lá ter passado para banhos com a família na sua meninice. Marques Gomes diz-nos que «não vai além do último quartel do século XVII, a existência da Torreira como praia balnear, e, estação de pesca marítima. As habitações dos pescadores, os palheiros, eram todas junto à margem da ria, e era neles que se albergavam as pouquíssimas pessoas que então para ali iam a banhos» (10, p. XIX). Referindo-se ao século XIX outro autor diz que «a praia da Torreira teve foro de elegante e a frequência da melhor sociedade do centro do país, da Bairrada a Viseu, até aos limites do concelho da Feira» (20, p.142).

A actividade piscatória foi-se organizando em companhas (companhias), cujo número variou ao longo do tempo. Em 1835 seriam 7 (20, p. 45) e em 1852 atinge-se as 9 (8), o máximo de que temos notícia. Em 1874 e 1885 as companhas são 6 (20, p. 239 e 240; 20, p. 242). Regista-se em 1895 um total de 5 companhas (20, p. 299) e, pouco depois, em 1899, 6 companhas (10). Quase todos os elementos destas companhas eram da Murtosa e dedicavam-se à pesca na costa da Torreira nos meses de Maio/Junho a Novembro de cada ano (1 e 16), ficando a localidade praticamente deserta durante o resto do ano, entregue apenas aos cuidados do ermitão que tomava conta da capela de S. Paio. O puxar das redes de arrasto para terra foi primeiro feito por mão humana e depois por gado bovino (20).

Em 1836 sabemos funcionar já um sistema de «segurança social» entre os pescadores (20, p. 55 e ss.), o qual implicava, entre outras coisas, que os pescadores doentes continuassem a receber o seu salário, e da mesma forma as suas viúvas. É interessante notar como o sistema acabou mesmo por ser oficializado (decreto dado a 5-11-1852 e publicado no Diário do Governo de 20-11-1852) antes que qualquer país do mundo estabelecesse o seu próprio sistema de segurança social estatal. Marques Gomes também se refere ao mesmo assunto (10).

As únicas construções que existiam na Torreira do século XIX eram rudimentares palheiros de madeira, frágeis e expostos ao fogo e a outras intempéries, dispostos em duas faixas ao comprido, uma no mar outra na ria, sendo o aglomerado da ria o mais desenvolvido (20, p. 217 e ss.). Por volta de 1885 as habitações do lado da ria eram utilizadas para depósito de sardinha e as da beira mar para o alojamento de pescadores durante a safra e banhistas na quadra de banhos.

Uma questão curiosa é a de ter existido na Torreira um pequeno caminho de ferro, entre o mar e a ria, para o transporte de peixe, inaugurado em 1877 e que terá durado uma meia dúzia de anos. Empregaram-se meios diversos para movimentar os carros (20, p. 199): foram puxados por cavalos, muares, a contrapeso de água, vapor, electricidade e até vela ao vento. Em 1873 esteve em projecto um caminho de ferro que ligava a estação de Estarreja à Bestida e houve ainda outros projectos para a Torreira em 1874, embora nenhum deles tenha saído do papel (20, p.185 e ss.; e pequena ref. em 16).

S. PAIO

Por alturas de 1758 existia no «sítio da Torreira», em areal, entre o mar e a ria, a capela de Nossa Senhora do Bom Sucesso, com os santos de S. Lázaro e S. Paio nos altares laterais. O S. Paio da Torreira era já muito procurado por ser bom advogado contra os males de saúde. A festa e romagem à Nossa Senhora do Bom Sucesso era feita a 27 de Julho e o arraial atraía muita gente, bem como numerosos barcos luzidos e vistosos. Pouco menor que as outras festas então existentes na Gelfa era a de S. Lázaro e S. Paio, conjuntamente a 7 e 8 de Setembro (1).

Marques Gomes afirma em 1899 (10, p. XXIV) que a festa «atrai à Torreira milhares e milhares de romeiros» e é «a festa mais popular e concorrida do distrito». O momento alto das festividades consistia no dar banho ao santo em vinho tinto, na véspera e no dia da festa, para beber-se de seguida o vinho, o que se acreditava afastar as doenças. A capela de S. Paio por várias vezes foi enterrada pelas areias e reedificada.

No tempo dos banhos, no século XIX, costumava haver música na praia aos domingos e nos dias santificados (16).

A festa do S. Paio era motivo de várias quadras populares, divulgadas por diversos autores. Registamos algumas:

«O S. Paio da Torreira
Foi tomar banhos à praia,
Com tamanha borracheira…
Que às calças chamava saia.»

«Oh! S. Paio da Torreira,
oh! Milagroso santinho!
Se me casares neste ano
Levo-te um pipo de vinho.»

«Oh! S. Paio da Torreira
meu milagroso santinho
hei de cá vir para o ano
mergulhar-te bem em vinho»

JORNALISMO

A Torreira tem a curiosidade de ter possuído o primeiro jornal da actual comarca de Estarreja. Foi o «Boletim da Torreira», que surgiu em 15-9-1853 e do qual saíram apenas 5 números. Era impresso em Aveiro e foi dirigido pelo Dr. José Luciano de Castro (5, p. 72; 21, p.144 e 145; 10). Tendo existido outras publicações nesta freguesia será talvez de destaque, entre elas, a «Revista da Torreira», que publicou-se entre 1923 e 1925.

ADMINISTRAÇÃO

Lopes Pereira indica 1 de Dezembro de 1835 como a data da integração da Torreira no concelho de Estarreja (6, p. 44) e o Dr. José Tavares refere-se para tal também ao mesmo ano (20, p. 45). Na realidade o Diário do Governo de 11-12-1835 traz um decreto, emitido a 1-12-1835, que dá a Torreira como desanexada do concelho e julgado de Ovar para se anexar ao concelho e julgado de Estarreja. Terá no entanto permanecido como parte integrante da paróquia de Ovar e talvez tenha regressado ao mesmo concelho, uma vez que foi anexada ao concelho de Estarreja pela segunda vez em 1855, como veremos de seguida.

Marques Gomes indica que a 24 de Outubro de 1955 a Torreira passou a lugar da freguesia civil da Murtosa e a 10 de Setembro de 1856 da paróquia do Bunheiro (10, p. XIX). O Dr. José Tavares dá a Torreira como pertencendo à paróquia do Bunheiro em 1885 e indica a sua passagem para a freguesia da Murtosa para por volta de 1854 (20, p.242). Se de facto alguma vez a Torreira pertenceu à paróquia do Bunheiro não estamos certos, mas fica-nos a ideia de, não pertencendo a Torreira à paróquia do Bunheiro, o pároco daqui tenha conquistado o território para a sua paróquia quase que por “usucapião”, por ali ir dar missa por alturas do S. Paio. Já por 1885 havia esta confusão. A Câmara de Estarreja, por seu turno, indica em 1865 que administra a capela de S. Paio desde 1834 (20, p. 235)! Afora outras considerações, e pondo de parte as opiniões muito apaixonadas e pouco informativas a este respeito (15), indicamos seguidamente, fugindo às fantasias, os documentos que nos interessam. Assim, o Diário do Governo de 19-11-1855 publica um decreto dado a 24-10-1855 segundo o qual é anexada à freguesia da Murtosa o lugar da Torreira, e o Diário do Governo de 18-9-1856 traz um decreto dado a 10-9-1856 segundo o qual o lugar da Torreira é também anexado à paróquia da Murtosa. A freguesia foi criada a 30-10-1926 (2) e a Igreja inaugurou-se em 1952 (12).

DEMOGRAFIA

Sabemos que a «Torreira» tinha um único vizinho em 1758 (1), isto é, um casal ou uma família. Provavelmente tratar-se-á do ermitão que tomava conta da capela e, talvez, dos haveres dos pescadores, que ocupavam a praia só na época de pesca e por isso não eram contabilizados. Na segunda metade séc. XIX haveria talvez mais de 500 fogos, todos de madeira, embora a informação seja pouco credível (16). Os dados oficiais, existentes desde que a freguesia ganhou autonomia administrativa e, por isso, passou a ser contada também autonomamente, indicam os seguintes números:

Ano – População residente (4)
1930 – 1091 (235 fog.)
1940 – 1404 (446 fog.)
1950 – 1641
1960 – 1588
1971 – 1590
1981 – 2181 (1022 fog.)
1991 – 2297 (2266 fog.)
2001 – 2495 (2783 fog.)

De notar o aumento extraordinário de fogos nas últimas décadas, facto que se deve ao incremento do turismo.

ACESSIBILIDADES

A passagem da Murtosa para a Torreira fez-se no século XIX a partir do Portigão (Murtosa) e, especial e mais duradoiramente, da Bestida (Bunheiro), por meio de barcas. As primeiras lanchas a motor surgiram no final da monarquia (20, p.201). Em último lugar, a ponte da Varela só veio a ser inaugurada em 1964.

BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA

1. Costa, Eduardo, Memória Paroquial de Ovar de 1758, A. D. A., vol. XXXIV, p. 204 e ss.

2. Diário do Governo; anos 1835, 1852, 1855, 1856, 1926

3. Dias, Diamantino, «Glossário – designações relacionadas com as marinhas de sal da ria de Aveiro», 1996

4. Instituto Nacional de Estatística (apontamentos avulsos)

5. Lopes Pereira, «Murtosa – gente nossa», 3.ª ed., 1995

6. Lopes Pereira, «Murtosa – terra nossa», 2.ª ed., 1995

7. Machado, José Pedro, «Dicionário onomástico etimológico de língua portuguesa», 2.ª ed., 1993

8. Maranhão, Pe. Francisco dos Prazeres, «Diccionario Geographico…», 1852

9. Marques, Fernando, «A terra da Marinha» (conferência realizada na Câmara Municipal da Murtosa, no 61.º aniversário do concelho), 1987

10. Marques Gomes, «Notícia Histórica», in «A Murtosa – A propósito da sua autonomia», de José Maria Barbosa, 1899

11. Nogueira, R. de Sá, «Subsídios para o estudo da linguagem das salinas», separata de «A língua portuguesa», vol. IV, 1935

12. Nogueira Gonçalves, A., «Inventário artístico de Portugal», vol. X, Distrito de Aveiro – Zona Norte, 1981

13. Oliveira, Monsenhor Miguel de, «Ovar na Idade Média», 1967

14. Piel, Joseph-Marie, «A formação dos nomes de lugares e de instrumentos em português», 1940

15. Pinho, João Frederico Teixeira de, «Memórias e datas para a história da vila de Ovar», 1959 (edição post-mortem do autor, falecido em 1870)

16. Pinho Leal, «Portugal Antigo e Moderno» (em vários volumes, sendo de 1880 aquele em que aparece a Torreira)

17. Rocha e Cunha, S., «O Porto de Aveiro», 2.ª ed., 1959 (conferência realizada em 1923)

18. Rocha Madahil, A. G., Foral de Ovar, A. D. A., vol. IX, p. 306 e ss.

19. Souto, Alberto, «Origens da Ria de Aveiro», 1923

20. Tavares Afonso e Cunha, José, «Notas Marinhoas», vol. IV, 1994

21. Zagalo dos Santos, A., «Imprensa periódica do distrito de Aveiro», A. D. A., vol. IX

In M. P., «O Jornal de Estarreja», 5.IX.2003